Aproveitando o dia de chuva por aqui, resolvi ler as notícias dos últimos dias no país. Diante de uma
nota na Folha OnLine a respeito do livro do ex-Ministro, atual deputado federal, Antônio Palocci, resolvi organizar umas idéias por aqui. Como eu pretendo falar de economia, mais especificamente de jornalismo econômico, este post deve ficar grande. Mas, se você tiver interesse e quiser entender um pouco sobre como funciona a produção de notícias em Brasília, fique atento.
O valoroso jornalista Kennedy Alencar tem uma coluna nos finais de semana na Folha OnLine, além de escrever regularmente naquele jornal, a respeito de notícias de bastidores do Palácio do Planalto. Quase toda a semana ele trata de temas que circulam nos corredores, muitas vezes dando voz às "opiniões do Presidente Lula". Em quase 90% das suas publicações aparecem frases descrevendo como
"o Presidente está profundamente irritado" com alguma coisa, ou está
"decepcionado" com outro fato, ou ainda que ele
"exigiu" que seus assessores parassem de discutir algum tema. O fato do Presidente não ser ouvido em quase a totalidade de seus pedidos mereceria um comentário em separado, mas a impressão que fica, para quem lê o noticiário político/econômico com frequência, é que o jornalista usa deste recurso para passar a impressão ao leitor que ele, de fato, está muito bem informado sobre o assunto. Algum tempo atrás, o Elio Gaspari já tinha chamado atenção para o uso indiscriminado deste recurso nos tempos de Governo Lula.
Pois bem, a nota publicada me lembrou de uma série de notícias publicadas entre 2004 e 2005 a respeito do descontentamento de Lula com o Banco Central. O pano de fundo, para quem não lembra, era o seguinte: a inflação estava girando na casa dos 6% ao ano, com tendência de queda forte; o Banco Central estava terminando um processo de alta dos juros, coisa que parte do governo (a ala "desenvolvimentista", como sempre) já vinha pressionando; com os sinais de que a economia não iria crescer muito naquele ano, o Presidente estaria cobrando severamente o então Ministro da Fazenda e o Banco Central uma maior queda nos juros.
Agora, vem a público a revelação que o Presidente, pessoalmente, determinou que a meta de inflação para aquele ano fosse de 4,5%, depois de convencido que 4% (a vontade dele) seria um objetivo muito ambicioso. Mais do que isto, a equipe econômica trabalhava com um número em torno de 5% para a meta de 2005. Lula teria sido, na visão do ex-Ministro, "mais conservador que a sua própria equipe econômica". Que bela notícia, hein?! Vamos recapitular o que foi publicado naquele período a respeito das opiniões do Presidente:
Em
20/04/2004:
Apesar de reiteradas declarações de apoio ao ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) na área fiscal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já deixou claro a ele que deseja mudar a meta de inflação de 2005. Pela meta do ano que vem, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) poderia chegar a 4,5%. Lula quer que ela possa ser alterada para até 5,5% ao ano --a meta de 2004.
Em
20/05/2004:
Apesar de ter sido avisado que o Copom poderia manter a taxa Selic em 16% ao ano devido à combinação de vários fatores negativos externos e internos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva demonstrou decepção a interlocutores quando soube da decisão do Comitê de Política Monetária. "Erro grave" foi a expressão usada no Palácio do Planalto, segundo apurou a Folha.
Em
22/01/2005:
Para Lula, há um conservadorismo exagerado no órgão. Ele teme que isso prejudique o crescimento do PIB em 2005. Ao alterar a composição do BC, Lula deseja arejar a discussão e amenizar o suposto conservadorismo.
Meirelles alegou que, para cumprir a meta de inflação deste ano, é preciso elevar os juros. Lula gostaria que o BC trabalhasse dentro da margem de tolerância de 2,5 pontos percentuais para cima ou para baixo, o que limita o teto da meta a 7% ao ano. Meirelles disse que já abandonou o centro da meta (4,5%) e que mira em 5,1% para a inflação não disparar. (...)
A contrariedade de Lula cresceu nesta semana porque, no final do ano passado, Palocci e Meirelles disseram a ele que chegara ao fim o atual processo de alta dos juros. Lula deu a notícia em jantar com senadores do PT, o que desagradou aos membros do Copom, levando-os a mostrar novamente sua independência.
O que deu errado? Se o Presidente sabia dos efeitos de escolher uma meta de inflação mais baixa (menos crescimento e mais juros no curto prazo), por que ele "ficava irritado" com as decisões do Banco Central? Vamos listar algumas hipóteses:
- Lula não entende nada de economia, não tinha a menor noção do que tinha solicitado em 2004 (algo como a frase do Vice-Presidente José de Alencar na matéria inicial, dizendo "se dependesse dele, a inflação seria zero") e queria voltar atrás na sua decisão sobre a meta. Foi impedido porque o mercado interpretaria a decisão como fraqueza do Ministro da Fazenda e do BC.
- Lula tinha conhecimento de todos os efeitos, mas como precisava "jogar para o seu público", partiu para a tática mensalônica do "Eu não sabia, fui enganado".
- Lula sabia dos efeitos da decisão, mas seus assessores próximos, ligados a correntes alternativas do PT, faziam questão de ligar para a imprensa afirmando que o chefe estava descontente. Tudo para minar o poder da Fazenda e do BC.
A primeira hipótese pode ser descartada de saída: Lula entendia, sim, os efeitos da sua decisão. Mais do que isto, ele parece saber exatamente quais são as limitações de um Banco Central no controle de preços da economia. Duvida? Então por que ele afirmava, em abril de 2005, que
"não foi o Banco Central que determinou [a meta de inflação], foi o governo"? Mais do que isto, por que ele afirmaria, na mesma matéria, que "para buscar a meta de inflação, o BC só tem o mecanismo de aumento das taxas de juros"? Ele sabia, sim, do que está falando, e estava informado, na época, sobre os efeitos da sua escolha da meta. (Interessante, nesta matéria do link, é que a manchete dá claramente a entender que Lula estaria criticando o uso dos juros para conter a inflação, mas o importante na matéria, como em muitas que circulam por aí, são as entrelinhas...)
Vamos para a segunda hipótese: Lula joga para a platéia, "estimula o debate entre as tendências" (credo, como eu odeio quando usam esta expressão!), e diz o que passa pela cabeça de acordo com a conveniência. Ainda que isto seja verdade, se o Presidente estivesse tão descontente como noticiado, por que ele não demitiu o Presidente do Banco Central? Ou melhor, por que ele não colocou claramente ao Presidente do Banco Central que estava descontente com a diretoria e que, se ele tivesse amor ao cargo, deveria trocar alguns diretores? Dado que todos os palcos por onde Lula desfilou o seu discurso estavam (e ainda estão) contra o Banco Central, se ele "foi enganado", poderia facilmente desfazer o seu erro.
Por fim, a última hipótese, e que eu considero a mais verdadeira. Jornalistas "do Planalto" não possuem acesso direto ao Presidente: falam com assessores, secretários, porta-vozes, puxa-sacos, empregados do Palácio, ... tudo para saber "como anda o humor do chefe". Ficam escrevendo picuínhas sobre o dia-a-dia do Palácio, falando do filme que o Presidente assisitiu na última noite, como se isto fosse um sinal de pessoa com acesso à boa informação. Agora coloque-se no lugar dos assessores. O que eles ganham passando estas informações para jornalistas? Ganham muito: 1) ganham um canal direto com a imprensa para limpar a barra em situações de crise - "se eu dei a informação sobre o filme que o Presidente assistiu, agora você publica que o Presidente não sabia nada sobre o mensalão, e que ele está muito chateado com a situação, ok?" 2) ganham uma fonte importante para antecipar o que vai sair nos veículos de comunicação alguns dias à frente; 3) ganham um painel para expressar os seus pontos de vista diante dos seus pares: usa-se a imprensa, através de uma suposta opinião da Presidência, para evidenciar as suas idéias a respeito da condução do governo.
Da próxima vez que alguém disser que "o Presidente está descontente" com alguma coisa, para descobrir se a informação tem fundamento, faça a seguinte pergunta: se ele está descontente, então por que não mudou? A resposta é o indicador fundamental sobre a veracidade da notícia.
Um abraço!