O Mankiw vem tratando no seu blog e em outros espaços disponíveis sobre idéias capazes de criar taxas de juros nominais negativas. Para explicar: em condições normais (taxas de juros nominais positivas), quando você empresta algum dinheiro, a pessoa que fez o contrato se compromete no futuro a pagar o valor que você emprestou, mais um percentual sobre o valor da operação, que corresponde aos juros. Sob taxas de juros nominais negativas, o pagamento do empréstimo seria igual ao valor emprestado, subtraído de um percentual do valor emprestado. Ou seja, a pessoa que empresta o dinheiro no presente se compromete a receber um valor menor no futuro em termos nominais.
A idéia é maluca, sim, mas a lógica é razoável: se existe algum motivo pelo qual guardar dinheiro resulte em uma perda, sob certas condições torna-se interessante emprestar o dinheiro a uma taxa de juros que seja menor que o valor da perda. Por exemplo, digamos que, por algum motivo exotérico (um imposto sobre os saldos monetários), os US$10.00 que tenho hoje na carteira valerão apenas US$9.00 no final do mês, e que a inflação é igual a zero. Se eu emprestar estes US$10.00 hoje, aceitando receber US$9.50 no futuro, terei evitado uma perda, e estarei, no futuro, em situação melhor.
Entre todas as idéias, uma me chamou a atenção, e veio desta raça esquisita chamada "grad student" (onde estou incluído, atualmente; daí talvez o interesse). Para sintetizar a idéia: imagine que, todo o final de ano, o Banco Central faça um sorteio de um número entre zero e nove, e todas as cédulas em circulação que terminem com o número sorteado perdem o valor. Imediatamente, o valor esperado em um ano de carregar uma nota de dinheiro corresponde a 90% do valor da nota (E(X) = 0.1 * 0 + (1-0.1) * X, onde X é o valor da nota, e 0.1 é a chance de sair o número da cédula). Com isto, qualquer empréstimo feito onde o emprestador se disponha a receber, digamos, apenas 95% do valor atual da cédula representa um ganho, e estamos no ambiente descrito como "exotérico" anteriormente.
O que me chamou a atenção na proposta é o aspecto legal da idéia: as cédulas correspondem, em termos legais, a uma obrigação do governo emissor para com a pessoa que retém a moeda. Ou seja, se o governo dos Estados Unidos resolver recolher todas as cédulas do mundo, alguma contrapartida NO MESMO VALOR deverá ser feita às pessoas que possuírem as cédulas de dólar. E é aí que a coisa se complica. Aceitar uma cédula, sabendo que existe a chance de, no futuro, ela perder o seu valor, constitui um calote? Ainda que a perda do valor esteja no "contrato" entre quem emite e quem recebe a cédula, retirar o valor da nota constitui um fato ilegal?
Para detalhar mais o problema que eu tenho, vamos a exemplos práticos. Imagine que você tem um dinheiro sobrando e resolva investir em títulos públicos. Está cansado do rendimento baixo do seu país de origem, e resolve se arriscar pelos ambientes conturbados de economias emergentes. Chega o governante de um país suspeito da América Latina que garante 15% no ano em troca do teu dinheiro. Você repassa o dinheiro e vai para casa feliz. No dia seguinte, liga o noticiário e sai a notícia que o governante torrou a sua grana em uma festa, e já anunciou que, como outras vezes que ele teve acesso a dinheiro dos outros, ele está dando os canos. Você sabia do comportamento suspeito do governante, e, mesmo assim, emprestou. Isto, sabemos, é calote.
Agora, imagine que o governo do seu país passe uma lei, aprovada pelo congresso, dizendo que existirá, daqui para frente, um mecanismo como o sorteio descrito acima. Isto não vale para o dinheiro já existente, apenas para novas emissões de moeda. Obviamente, você tem o direito de não aceitar como contrapartida do pagamento do governo as cédulas impressas pela casa da moeda. Logo, um primeiro impacto que podemos esperar da implementação da medida é uma redução da demanda por moeda, na sua forma "papel-moeda", mas um aumento de outras formas de liquidez (depósitos à vista, ou qualquer outro agregado monetário). Entretanto, no aspecto puramente legal, o "dinheiro perdido" após o sorteio constitui um calote?
Eu creio que sim. No paralelo dos exemplos acima, a aprovação de uma lei implementando o sorteio pode ser vista como equivalente à aprovação de leis que institucionalizem o calote nas economias emergentes (e elas existem, em profusão, jogadas no meio dos pacotes malucos que acompanham os calotes). Quer dizer, não é a quebra da garantia legal de circulação que faz com que um calote seja um calote: é a quebra de um valor pré-acordado, legal. Ou seja, não é a garantia da validade da nota, mas a garantia do valor da nota que interessa. Se eu tivesse dez notas de US$1.00, com todos os números seriais diferentes e, depois do sorteio, tivesse a nota sorteada substituída por outra de curso legal, não haveria o calote, porque não haveria perda de valor, ainda que todas as notas sorteadas acabassem recolhidas.
Óbvio que, com isto, a proposta do colega de Harvard perderia o sentido. Mas só o trabalho de dar uma segunda olhada para a idéia já foi um exercício interessante.
Abraços!