outubro 14, 2007

Luiz Caversan

O texto é do dia 6 deste mês, só consegui ler agora graças à porcaria do site da Folha que resolve mostrar colunas antigas, ao invés dos textos mais atuais. Serviu para alguma coisa. Vai na íntegra, mesmo.

Abraços!

Invasão de privacidade

Por Luiz Caversan.

- Boa noite! Posso falar com o sr. Luiz Carlos?

Xi, boa coisa não é, porque só minha mãe me chamava de Luiz Carlos, mesmo assim quando estava muito brava. Mas resolvo atender.

- Pois não, é ele. Quem está falando?

- Antes de mais nada eu gostaria de informar que nossa conversa está sendo gravada?

- Como assim, gravada?

- Questão de segurança...

- Mas eu estou em perigo?

- Não, não. Olha, primeiro de tudo eu gostaria de lhe parabenizar (sic) pelo seu ótimo relacionamento com o comércio de sua cidade.

- Como assim, ótimo relacionamento? Você quer dizer que eu não sou caloteiro?

- Isso mesmo! Quer dizer, não, não. Apenas estou dizendo que o senhor é um ótimo cliente...

- É, quem te contou?

- Como assim?

- Quem te contou que eu chamo Luiz Carlos, que este é meu telefone, que estou em casa às 10 da noite, que compro, pago? Como você me descobriu?

- Ah, o senhor está em nossa base de dados?

- É mesmo? E quem me colocou na sua base de dados?

- Bem, isso eu não posso dizer...

- A nossa conversa está sendo gravada?

- Está? Para sua segurança...

- Então eu estou em perigo?

- Não, não... eu só preciso falar com o senhor alguns minutos...

- Senão você não ganha nada, né?

- Como assim?

- É, você tem que me prender no telefone pelo menos x minutos para ganhar alguma coisa. E ganha mais se me vender... o que você está me vendendo mesmo?

- Cartão de crédito... Não! Desculpe, estou ligando primeiro para cumprimentá-lo...

- Isso você já falou, vamos aos finalmente, depois você me explica como eu entrei na sua tal base de dados.

- É um cadastro...

- Quer dizer que eu estou cadastrado? Tem nome, endereço, RG, essas coisas todas?

- Sim?

- E quem me cadastrou?

- O outro cartão de crédito...

- Ah, quer dizer que vocês pegaram meu cadastro num cartão para me vender outro cartão? Espertinhos, heim?!

- Não, o senhor não está entendendo...

- Alô, alô, nossa conversa está sendo gravada?

- Sim!

- Então eu quero falar para quem ouve a gravação, se é que alguém ouve a gravação: olha aqui, pessoal, isso é muito feio, viu? Vocês pegaram meus dados do meu cartão de crédito sabe-se lá como, sabem tudo a meu respeito, certo?, RG,CP, telefone, endereço. Sabem, até que eu pago direitinho minhas contas, certo? Daí mandam essa moça simpática ligar pra minha casa às 10 da noite, com essa conversinha de 'parabéns pelo meu ótimo relacionamento com o comércio da sua cidade' (de fato, eu me dou super bem com a dona Francisca da mercearia...) e tudo e tal e acham que está tudo bem, que é assim mesmo?

- Por favor, senhor Luiz Carlos...

- Peraí, Luiz Carlos era minha mãe que me chamava; agora espera aí que eu estou falando com o moço da gravação. Então, isso é feio, imoral, antiético e sobretudo invasão de privacidade. Você sabia, moça, que você está invadindo minha privacidade?

- O senhor está falando comigo agora?

- Sim!

- Não sabia, não...

- Desculpe, querida, eu sei que você está tentando ganhar o seu, mas sua tarefa é inglória e está a serviço de interesses espúrios...

- Peraí, espúrios, não!

- Sim, espúrios, minha filha, isso não é nenhum palavrão, embora pareça: quer dizer alguma coisa que não está de acordo com as leis ou a ética, é ilegal, desonesto, ilegítimo.

- Ah, bom...

- Bom nada, eu estava quietinho aqui no meu canto e você me liga sabendo tudo a meu respeito e querendo dar um golpe no meu cartão do crédito para eu ficar com o seu?!

- Não!

- Sim! E sabe o que é pior pra você? Faz dez minutos que a gente está conversando e você nem conseguiu falar qual é o seu cartão de crédito!

- Senhor Luiz Carlos, o cartão é...

- Boa noite...

*
Discute-se em São Paulo se colocar chips para monitorar os automóveis da cidade seria ou não invasão de privacidade. Polêmica ultrapassada, esta: como demonstra o diálogo acima, eles já sabem tudo.

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